Entrevista padre Rino – Estigmatização, preconceito, rejeição e até exclusão social estiveram relacionados a pessoas com transtornos mentais durante muito tempo. Com as mudanças nas últimas décadas, sobretudo no tratamento desses males, admitir um distúrbio tem se tornado atitude menos complicada. Essa aceitação, ainda que insuficiente pode, no entanto, explicar o aumento no número de diagnósticos.

Problemas como a depressão, a ansiedade e o estresse afastaram, no Brasil, quase 200 mil pessoas do trabalho em 2016. A depressão será, em 2020, o fator mais incapacitante, segundo a Organização Mundial de Saúde. O Plano de Ação para a Saúde Mental da OMS revela que essas patologias afetam 700 milhões de pessoas no mundo. Dados referentes a 2015 mostram que 11 milhões de brasileiros sofrem com depressão, o que faz do País o segundo maior em prevalência da doença na América Latina.

Exemplo do Bom Jardim

Felizmente, há iniciativas que ajudam a minimizar o impacto desses males na saúde mental da população. Uma delas tem à frente o padre Rino Bonvini, psiquiatra e missionário comboniano (instituto religioso da Igreja Católica Romana, dedicado à evangelização dos povos), que chegou a Fortaleza em 1996 e colocou em prática uma terapia na qual as pessoas foram acolhidas e partilharam suas dificuldades.

Foi quando teve início o Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim, ação que conta com projetos que pertencem à Associação Brasileira de Terapia Comunitária e que recebem verbas da União Europeia. Para Rino, “não se trata só de tomar o remédio, de se internar. A socialização das terapias alternativas reduziu o preconceito”.

A sétima arte faz referência a esse momento no filme “Nise – O coração da loucura”, que conta como a psiquiatra Nise da Silveira introduziu a terapia baseada na arte para o tratamento da esquizofrenia.

Vulnerabilidade social

Outros elementos contribuem para o que se chama de naturalização dos transtornos mentais. Um deles é a falta de infraestrutura adequada nos centros urbanos, que acarreta em precariedade nos serviços básicos de saúde. “Há 50 anos, Fortaleza tinha 250 mil habitantes; hoje, são 2,5 milhões. Antes, 70% da população morava no campo. Hoje, é o contrário”, enfatiza Rino.

“Isso levou a uma vulnerabilidade social, gerando patologias (ansiedade, pânico e depressão). As pessoas convivem com agressões, assaltos, tiroteios, balas perdidas, queima de arquivo na porta de casa, injustiça com os envolvidos no mundo das drogas. Esse povo vive em constante perigo e estresse pós-traumático”, diz.

Real X emocional

Entre os fatores está a forte influência da internet. Segundo o religioso e psiquiatra, há uma informatização das relações, separando o real do emocional. “O que confirma nossos sentimentos é a comunicação verbal atrelada à não verbal. É preciso harmonia, sintonia. Hoje, elas não se correspondem e há uma dupla comunicação, dominada pelas disputas de poder”. Diz que a internet é nociva “quando você está lendo algo e ‘blim’, vem o WhatsApp, o Facebook. Isso reduz a energia de atenção ao aqui e agora; não se escolhe o que absorver, e sim é escolhido”.

O mundo virtual induz ao comportamento autodestrutivo. “É frequente os jovens começarem a se agredir, se machucar. Entram em redes sociais e lá, até mesmo o suicídio vira algo glorioso. Há tragédias induzidas por perfis ‘fakes’, que não têm a identidade reconhecida”, frisa.

Para o psiquiatra, carregar-se de energias positivas é um hábito em desuso. “É preciso ter uma energia que leve a pessoa a viver uma vida mais leve, não como a que se dá em nome da realização que o capitalismo oferece, de comprar mais. É aí que o ser some”.

‘Psiquiatrização’

A facilidade de se encontrar informações sobre determinados sintomas pode levar ao autodiagnóstico. Ter angústia ou tristeza, em algum momento da vida, não significa que se sofra de depressão. “A pessoa fica sabendo de algo no ‘Dr. Google’, na internet, na vizinha, então vai e se medica”, esclarece padre Rino.

Uma consequência possível é a automedicação. Segundo Bonvini, as pessoas já chegam ao consultório com o tratamento em mente, geralmente à base de ansiolíticos, remédios perigosos que podem levar o paciente a um quadro de dependência química.

Esse fenômeno é conhecido como “psiquiatrização da saúde mental” (ampliação do âmbito de ação da psiquiatria em um determinado meio). “É quando a pessoa tem o distúrbio a nível existencial, que se pode curar com terapias naturais, descanso, desabafo entre amigos. Mas não, ela recorre logo ao remédio”, explica Rino Bonvini, presidente do Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim.

Fatores clínicos são igualmente importantes, uma vez que erros na formação e avaliação médica, por exemplo, podem influir na qualidade do tratamento. “Profissionais da saúde estão acomodados a uma abordagem biomédica, baseada no imediatismo do diagnóstico”, diz o psiquiatra’.

Social e espiritual

Assim com em outras iniciativas pelo Brasil afora, essa visão que pensa no social e no espiritual, felizmente tem resistido. Nela, Bonvini desenvolve uma abordagem que é sistêmica e comunitária, entendendo que onde há uma pessoa doente, há também uma família e uma comunidade que sofrem com os efeitos. O maior desafio é, além de eliminar os sintomas, trabalhar para extirpá-los pela raiz.

Para chegar à cura, outro aspecto vital. “Se crer que o médico vai curá-la, que aquele remédio é o certo, o efeito será muito melhor. A relação emocional é, então, necessária no tratamento”, relata Rino.

Fique por dentro

A abordagem é integral – social e mental

Os projetos da ONG visam combater os problemas sofridos (e compartilhados) pelos moradores do Bom Jardim. O “Sim à Vida”, por exemplo, é voltado para a prevenção de drogas (cofinanciado pela União Europeia desde 2015). Reúne crianças e adolescentes (7 a 14 anos) e familiares com momentos de autoconhecimento e autoestima. Hoje, são atendidas, 1.350 pessoas, 450 delas crianças.

“Em cada espaço são recebidas 60 crianças (cinco dias da semana). Além do acolhimento, os familiares identificados com um problema social ou de saúde mental são encaminhados aos serviços (social e de saúde) na Regional V de Fortaleza e Maracanaú”, diz o jornalista e advocacy do “Sim à Vida”, Elizeu de Sousa.

Os projetos de formação profissionalizante surgiram em 1996. As principais formações são a Abordagem Sistêmica Comunitária e a Terapia Comunitária Integrativa, além de Massoterapia e Cuidando do Cuidador.

Instituídas em todo o Brasil (nos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira), a ONG cuida também de uma Residência Terapêutica. O lar, de dez moradores e 24 cuidadores, surgiu com o intuito de desinstitucionalizar a predominância dos hospitais psiquiátricos. A ONG responde pelo CAPS geral do Bom Jardim. Em Fortaleza, são 14 equipamentos: seis gerais, seis AD (atenção às pessoas com problemas no uso de álcool, crack e outras drogas) e dois infantis. No bairro, os atendimentos mensais podem chegar a 3.500.

 

Sobre o Movimento Saúde Mental

Fundado em 1996, o Movimento Saúde Mental atua, entre outras coisas, com grupos de terapia comunitária, embasado pela Abordagem Sistêmica Comunitária, e desenvolve atividades para todas as faixas etárias no bairro Bom Jardim, em Fortaleza e bairros vizinhos.