O suicídio é um problema de todos. A afirmação da professora e pesquisadora Dayse Miranda, referência nacional sobre o tema e à frente do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ), envolve instituições, políticas públicas e cidadãos. E desfaz silêncios que colocam o assunto em estatísticas. Dizer que a taxa de suicídio tem aumentado, no Brasil, em todas as faixas etárias (de crianças a idosos), da década de 1980 para cá, segundo traça o Mapa da Violência de 2014, é um começo. Mas é urgente avançar e ir dos números às pessoas.

Os dados seriam a ponta de um iceberg: a maior parte do problema está no profundo humano. A falta de percepção do sofrimento do outro e de preparação para encarar uma ideia tão próxima de suicídio se refletem no aumento dos casos, relaciona Dayse Miranda. É preciso ir ao encontro do sofrimento, por mais difícil que seja. Há meios para se chegar lá e para atravessar a dor, orientam os especialistas ouvidos pelo O POVO.

“A possibilidade de se falar sobre o suicídio é algo importante. Claro que se falando adequadamente”, demarca a psicóloga Rebeca Moreira Rangel, que atuou, por quase 20 anos, no Batalhão de Choque e em presídios militares do Estado. “Tem que ter cuidado sobre como vai falar e de acordo com o público que vamos dizer. Se o assunto existe, se está aumentando cada vez mais, por que não falar?”, completa.

Há uma rede de apoio, considera a psicóloga, que pode ajudar na abordagem da dor que não se suporta: os centros de Referência de Assistência Social (Cras) e de Apoio Psicossocial (Caps), projetos de extensão universitária (como o Pravida e o Nami) e organizações da sociedade civil (como o Instituto Bia Dote, o Movimento de Saúde Mental Comunitária/MSMC do Bom Jardim e o Projeto 4 Varas, no Pirambu).

“Não tem que hesitar em buscar ajuda, profissionais que tenham experiência com isso”, reforça o padre e psiquiatra Rino Bonvini, presidente do MSMC do Bom Jardim. “Dar apoio, ouvido” às vulnerabilidades, ele insiste, é o caminho. E o caminhar vai se fazendo “de forma empática, sem julgar, sem minimizar o problema. Se trata de encontrar uma forma de escuta, de maneira empática”, sinaliza. “A palavra é acolher”, liga Dayse Miranda.

Uma das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), ressalta o major José Edir Paixão de Souza, comandante da seção de busca e salvamento do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará, é conhecer o tema para enfrentá-lo. A prevenção é o norte e é possível, pelo conhecimento, se tornar mais forte contra o suicídio, defende o major.

Informação leva à ajuda, ele contrapõe: “O mais importante é mostrar às pessoas que existem saídas”.

PREVENÇÃO: O comportamento fala

O suicídio já foi tratado como pecado (na Idade Média, séculos V a XV) e como loucura (na Idade Moderna, séculos VI a XVIII). Somente na década de 1990, demarca a pesquisadora Dayse Miranda, “o suicídio passou a ser um problema de saúde pública (está em todos os grupos sociais). E ainda não conseguimos incorporar, na agenda da política pública, a prevenção”.

O tempo deixou estigmas. “A questão do suicídio é uma situação que gera, em primeiro lugar, medo, rejeição e um tabu que até foi fortalecido pela questão religiosa”, dialoga o padre e psiquiatra Rino Bonvini. “Se achava que o suicídio fosse uma falta de respeito com a vida, com Deus, quase irreconciliável. Existe uma vivência de medo e exclusão do ato suicida”, relaciona. Assim, vive-se no silêncio e na culpa.

Além disso, considera o psiquiatra, está se perdendo o contato com o outro e consigo mesmo. “Também com o outro sobrenatural, divino… À medida que a pessoa tem contato consigo mesma, aprende a lidar com os próprios medos, fraquezas, necessidades. Buscar ajuda se tornou mais difícil porque as pessoas estão mais nos mundos virtuais”, diz.

Inércia, falta de energia, perda dos sentimentos se tornam a fala de alguém que silenciou a dor. “Às vezes, as pessoas não falam, verbalmente, mas deixam perceber”, atenta a psicóloga Rebeca Moreira Rangel. O comportamento comunica que algo não vai bem. “Gradualmente, a pessoa vai entrando numa espécie de vórtice que vai sugando para baixo… Por isso, é importante dar atenção aos sintomas de depressão e não relativizar”, soma padre Rino.

A ausência de planos, a desesperança na vida, a autoestima baixa são brechas onde cabem a pergunta: o que você está sentindo? “Seja a família, um amigo, o professor”, aponta Rebeca, qualquer pessoa próxima pode “tocar no assunto, pedir ajuda, encaminhar (a um especialista)”.

“A prevenção é monitorar quais as circunstâncias que podem tornar esse indivíduo ou grupo mais vulnerável”, esclarece a cientista política Dayse Miranda. A prevenção passa pela importância que damos a alguém, antes do fim. E toda vida importa. “Primeiro, é o acolhimento incondicional. Depois, é a escuta com empatia, que significa a capacidade de se colocar no lugar do outro, sentir o que o outro está sentindo e ver as possíveis soluções do problema, o encaminhamento”, norteia Rino Bonvini.

 

SERVIÇO

Em Fortaleza: Movimento Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim. Projeto 4 Varas, no Pirambu.

 

A imagem da força

VIDAS INVISÍVEIS | A vulnerabilidade das pessoas que convivem com a violência. E a vida que se refaz por forças contrárias à morte

O suicídio chama a atenção por uma estatística que tem crescido, desde a década de 1980, no Brasil: é a quarta maior causa de mortes entre jovens de 15 a 29 anos, informa o primeiro boletim epidemiológico sobre suicídio, do Ministério da Saúde (setembro de 2017). A extensão da perda é maior, 11 mil pessoas (média/ano) se matam no País, ainda que vidas de alguns grupos, como profissionais da segurança pública e população LGBT, além dos idosos (70 anos ou mais, que compõem as maiores taxas de suicídio no boletim), sejam despercebidas.

Grupos que estão em contato com a violência se tornam mais vulneráveis, avalia a cientista política Dayse Miranda, autora do livro “Por que policiais se matam?” (2016). A pesquisa se desenvolveu no doutorado, quando ela conheceu uma policial que lhe mostrou que a taxa de suicídio na Polícia Militar (PM) de São Paulo era quatro vezes maior do que a da população. Mas a instituição se fechou para o estudo, lembra a pesquisadora, e Dayse só encontrou respostas na PM carioca.

Após 58 palestras no batalhão da PM do Rio de Janeiro, “sobre valorização da vida”, Dayse conheceu as fragilidades de homens e mulheres que usam armas e são a imagem da força. A escala de trabalho desumana, o risco exacerbado (também para as famílias) e um corpo clínico insuficiente para o suporte psicológico são falhas de uma política pública para a saúde mental desses profissionais. “É preciso entender que está lidando com uma pessoa, que tem limites, precisa de cuidado. Dos 22 casos analisados, 70% declarou sofrimento pela perda de um colega em combate”, destaca a especialista.

“A dor do outro nos afeta. Para além disso, sofremos de estresse. É inerente da alma humana: não ficar indiferente à dor do outro”, dialoga o major José Edir Paixão de Sousa, comandante da seção de busca e salvamento do Corpo de Bombeiros do Estado do Ceará. Ele está na corporação desde 1998 e acompanhou “várias tentativas de suicídio” fora e dentro da instituição. O fato se tornou pesquisa no mestrado em Saúde Pública na Universidade Federal do Ceará.

O major estudou o suicídio em profissionais de segurança pública do Estado, de 2000 a 2014, e obteve uma taxa semelhante ao estudo feito, no Rio, por Dayse Miranda. “É mais grave na PM, deu 5,2 (risco maior frente à população civil)”, atenta. Na pesquisa, ele teve que vencer os silêncios sobre os sofrimentos. “A principal dificuldade é o rótulo que somos invencíveis, superiores à dor”, relata. “Quando aceito que tenho vulnerabilidades, trabalho em cima delas e estou me fortalecendo”, compreende.

“Tem o estereótipo, o bullying, a não-compreensão (do suicídio)”, reforça a psicóloga Rebeca Moreira Rangel, que atuou no Batalhão de Choque do Ceará por dez anos. “É uma sociedade que não se comunica e esse é o ponto que liga esses grupos vulneráveis. Pessoas que gritam porque querem ser acolhidas. Mas vamos conseguir. Tem que ter recursos para diagnósticos e investir na prevenção”, acredita Dayse Miranda.

“Para se evitar a morte, tem que se gerar a vida”, sinaliza o padre e psiquiatra Rino Bonvini. As pessoas precisam experimentar “a força e a energia da vida”, ele defende. “A vida é mais forte. É feita também da ajuda, da solidariedade, dos valores que podem fazer a sua vida diferente”, direciona.

Reportagem: Ana Mary C. Cavalcante