“[A culinária] me faz acreditar mais em mim, confiar e quem sabe arriscar alguma coisa que eu quero fazer, mas não tenho coragem”, conta o estagiário de rádio, Júlio César
Todos os dias ao acordar, grande parte da população repete o mesmo processo: se levantar da cama, escovar os dentes e tomar o seu café da manhã. Logo em seguida, passam a fazer as suas obrigações como trabalhar, estudar e se alimentar. A culinária faz parte da vida de todo mundo, seja naquele hotdog que você come na rua durante um dia corrido ou naquela refeição rica em proteínas que você consome no conforto de sua casa. Mas existem pessoas que enxergam a cozinha muito além de uma refeição diária, alguns a veem como uma terapia capaz de mudar o seu humor ao longo do dia.
“[A culinária] me faz acreditar mais em mim, confiar e quem sabe arriscar alguma coisa que eu quero fazer, mas não tenho coragem”, diz o estagiário de rádio, Julio César Matos de Souza, 21, que gosta de cozinhar por hobby. O jovem conta que descobriu a culinária ainda quando era criança e a levou para a vida adulta apesar de não querer seguir profissionalmente por esse caminho. “Vi que não era aquilo que eu mais gostava de fazer, mas que em momentos de estresse, em que eu estava com a mente ociosa, eu fazendo, cozinhando, vendo, assistindo, me dava prazer.”
A culinária tem de fato um poder tranquilizador nas pessoas, porque o ato de cozinhar afeta partes do cérebro que contribuem para aumentar o relaxamento, como explica o psiquiatra Rino Bonvini, 62. “Quando uma pessoa entra em estado de meditação ou de relaxamento profundo, ela entra no ritmo alfa. Nesta dimensão, a pessoa tem a possibilidade de silenciar a mente e se deixar entrar em contato com as emoções.” Além disso, de acordo com a professora de gastronomia da Universidade Federal do Ceará, Eveline de Alencar da Costa, 40, a culinária pode ser vista como uma forma de terapia, visto que a cozinha desperta, de acordo com ela, sentimentos bons e benefícios ao cérebro. “A neurociência e a psiquiatria reconhecem ações que trazem a felicidade e promovem a produção de substâncias químicas pelo cérebro, os chamados quartetos da felicidade: os hormônios ocitocina, dopamina, serotonina endorfina”, explica.
A gastróloga conta que o sentimento de prazer conquistado pela culinária pode ser despertado ao preparar um alimento ou até mesmo com o ato de aprender a prepará-lo. “Servir o prato pronto desperta a sensação de prazer e felicidade. São ações que podem induzir imediatamente a produção de substâncias
químicas benéficas ao organismo”, diz Eveline.
Em tempos de isolamento social, com o crescente avanço do novo coronavírus pelo mundo, pessoas que já sofriam com problemas psicológicos como depressão e ansiedade têm notado um agravamento em seus quadros, lidando com sensações de solidão, tristeza e incapacidade. “Nessa quarentena eu não estou muito produtiva, não faço exercícios em casa, às vezes não quero sair da cama”, conta Mariane Bruder, 21, atendente. A jovem, que lida desde antes da quarentena com ansiedade e depressão, se viu perdida no distanciamento e encontrou na culinária uma forma de distração e proatividade. Mariane conta que notou a importância da atividade em sua vida no dia em que decidiu fazer um bolo de banana. “Eu tava sem fazer nada e aquilo me distraiu muito, fiquei entretida, coloquei uma música e cozinhei sozinha. Meu namorado trabalha durante o dia e aquele foi um momento meu, muito bom, mesmo estando só.” A moça também contou que a solidão sempre foi difícil, pois sentia-se ansiosa. “Passar um tempo na minha própria companhia sempre foi difícil pra mim porque quando estou comigo mesma eu fico pensando nas minhas questões de ansiedade e depressão. E esse [a culinária] é o momento em que eu me distraio, fico bem comigo mesma.”
A depressão e a ansiedade podem ter a cozinha como uma forma de terapia, como conta Eveline, mas é necessário tomar alguns cuidados. “A depressão e ansiedade são exemplos de doenças que podem ter o trabalho na cozinha como terapia, desde que indicado pelo médico e com acompanhamento dos resultados através das consultas.” Apesar de a culinária ser uma terapia e trazer benefícios ao corpo e à mente, alguns organismos agem de forma diferente a esse estímulo, gerando estresse em determinadas situações, como conta a microempreendedora Letícia Helena de Carvalho, 26, que cozinha diariamente, gosta da atividade, mas se sente ansiosa quando precisa deixar a refeição pronta em um curto período de tempo. “Quando fica em cima da hora, meio desorganizado, dá uma ansiedade.” O psiquiatra Rino alerta para o fato de que apesar do efeito terapêutico, existem pessoas que não vão reagir da mesma forma. “Se a pessoa tem um diagnóstico de ansiedade, independente da terapia que ela esteja fazendo naquele momento, ela vai se manifestar”, diz ele. Para uma pessoa se sentir bem cozinhando, ela precisa primeiramente gostar da atividade, pois só assim a terapia terá um efeito sobre ela.
A professora de gastronomia Eveline e o psiquiatra Rino Bonvini trabalham juntos em um projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará chamado “Gastronomia Social” que busca atender a comunidade através de cursos de gastronomia. Os cursos são destinados a crianças, jovens e adultos. O programa tem como foco a terapia e discussões sobre a memória gastronômica durante as aulas. Além disso, Bonvini também está desenvolvendo um projeto de doutorado em que estudará 50 mu-
lheres que participam do Gastronomia Social. “Realizaremos perguntas sobre autoestima, ansiedade e qualidade de vida. Depois de seis meses, quando elas concluírem a primeira parte do curso, iremos avaliar como era a situação no começo e qual será no final”, conta Rino, que também trabalha com o projeto de Abordagem Sistêmica Comunitária, que já esteve no Congresso Mundial de Psiquiatria no ano de 2019.
O trabalho busca fazer o acompanhamento terapêutico para famílias em situações de risco que vivem em extrema pobreza.
FONTE: Jornal da Liberdade