Entre o menino, apelidado de “CDF” e “Cérebro” pelos colegas de infância, e o homem que recentemente defendeu a primeira tese de doutorado do Instituto Federal do Ceará (IFCE), há um longo caminho cheio de descobertas e superações. Os livros sempre foram os companheiros queridos de Gleison Capistrano. “Já adulto eu fui aprendendo a socializar mais”, diz.
Refazer este percurso da infância ao doutorado, nos dá pistas sobre as escolhas do agora Dr. Gleison. Como o menino que tinha dificuldade para memorizar e se sair bem nas provas escolares, foi tornando-se pesquisador e professor? “Descobri que ensinar outras pessoas me ajudava a aprender”. Então é isso, como dizia o mestre Paulo Freire, que ele traz na sua tese: “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.
O engajamento comunitário na juventude ajudou a fortalecer sua personalidade e contribuiu para construção de sua carreira profissional múltipla. Paralelo ao nutricionista, foi nascendo o professor. Primeiro, de cursinho comunitário no bairro onde cresceu, para ajudar outros jovens do Bom Jardim a entrarem em universidades. Na época, última metade dos anos 1990, ele já cursava sua primeira graduação em Nutrição, na Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Anos depois, após sua formação em Biologia também pela UECE, tornou-se professor de Ciências em escolas do ensino fundamental da rede pública de Fortaleza. Nesse percurso, o amor à pesquisa o levou a fazer especializações em Saúde da Família, ao mestrado em Nutrição, e agora ao doutorado na área de Ensino.
Há ainda mais uma componente importante nesta história, o encontro com o Movimento Saúde Mental (MSM), através daquele cursinho comunitário lá atrás. O Centro de Aprendizagem do Bom Jardim (CABJ) foi um dos primeiros projetos do MSM voltado aos jovens da comunidade e como nas demais ações realizadas, havia dentro da experiência uma preocupação com a saúde mental das pessoas que participavam, estudantes ou professores/as. Para além dos conteúdos exigidos para o vestibular, valorizavam-se os elos comunitários, a saúde numa perspectiva integral, os sonhos e a capacidade de superação dos desafios.
Foi pela junção de todos esses elementos que se deu a sua aproximação com a metodologia desenvolvida pelo padre Rino Bonvini, fundador do MSM, a Abordagem Sistêmica Comunitária. Em 2024, ela tornou-se seu tema de pesquisa no doutorado: “A Abordagem Sistêmica Comunitária no Ensino de Ciências em Escolas Indígenas, com Foco na Saúde Mental”.
Antes disso, em 2019, a Pandemia de Covid 19 atravessou o mundo. “Teve um dia que a escola toda estava numa crise de ansiedade, uma média de 40 alunos, numa escola de 200, começou a chorar, na hora do intervalo, às 3 da tarde. Eram alunos de diversas turmas e idades diferentes, do 6º ao 9º ano. Eu tinha saído e quando voltei pra escola estava todo mundo chorando. Que foi uma coisa semelhante ao acontecido numa escola de Alagoas. Era uma crise coletiva, talvez porque alguém começou a chorar e houve um desencadeamento de sofrimento”.
Foi a experiência no Movimento Saúde Mental que o fez compreender que se tratava de algo mais profundo e não passageiro. Então decidiu pesquisar sobre a saúde mental no ambiente escolar, já incorporando a metodologia ASC pelo fato de o MSM, através da Casa AME, já estar realizando atividades nas escolas da comunidade durante a Pandemia para contribuir com o bem-estar emocional no ambiente escolar.
Seria natural então fazer sua pesquisa nesse ambiente. Mas outra ideia lhe foi apresentada: pesquisar a ASC aplicada na Escola Indígena Povo Pitaguary, em Maracanaú, onde o MSM já tinha uma ação mais estruturada com o Projeto Sim à Vida, voltado à prevenção da dependência química entre crianças e adolescentes. Some-se a isto, traçar um paralelo entre a ASC e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim estava fechado o tema da pesquisa.
Entre agosto e dezembro de 2024, Gleison visitou a escola e a comunidade, aproximando-se de suas realidades. Com base em uma pesquisa documental, analisou e observou “inúmeros” pontos de contato entre a BNCC e a ASC para verificar se a metodologia usada pelo MSM poderia contribuir para melhorar as condições de saúde mental das crianças e adolescentes.
Pesquisador em campo na comunidade Pitaguary / FOTO: arquivo pessoal
Os achados de sua pesquisa são importantes e demonstram que a Abordagem Sistêmica Comunitária, por compreender e cuidar do ser humano em suas dimensões biopsicossocioespiritual, contribui para a melhoria da autoestima, do bem-estar emocional, do convívio social e de aspectos relacionados ao cognitivo dos/as estudantes.
Há pelo menos duas bases documentais que apontam isso. A avaliação nacional do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (SPAECE) demonstrou melhoria no desempenho dos/as estudantes da escola. Antes da experiência com o Sim à Vida, a escola havia ficado em último lugar na avaliação no ano de 2023. Já em 2024, após início do projeto, chegou ao quarto lugar entre mais de 80 escolas municipais avaliadas.
Há também uma pesquisa realizada pelo MSM, em duas etapas (agosto e dezembro de 2024) com estudantes do 9º ano. De acordo com Gleison, “com base na análise dos dados coletados por meio do questionário diagnóstico socioemocional, fica evidente o impacto positivo do “Projeto Sim à Vida” no desenvolvimento integral dos estudantes da escola indígena. Os resultados da pesquisa revelam um aumento significativo na autopercepção de felicidade, autoestima e autocuidado emocional entre os participantes, além de uma melhora na concentração nos estudos e uma diminuição dos sintomas de ansiedade relatados”.
Diante dos achados, fica no ar uma questão: o que a ASC traz de diferente daquilo que a escola já faz? “Você aprende a ser professor, sendo empático. Ensinar sem olhar o outro é só transmissão, nesse modelo do ensino tradicional onde você não se importa com quem tá aprendendo”. Essa reflexão de Gleison Capistrano talvez aponte uma das questões chave que ele verificou com a ASC na Escola Indígena, o fato de que os conteúdos não são desconectados da realidade dos/as estudantes. Elementos relacionados ao Território, Cultura, Ancestralidade, Pertencimento, Espiritualidade, Emoções são todos contemplados nas vivências realizadas, o que contribui para fortalecer o autoconhecimento e enraizamento deles/as. Isso, por sua vez, quebra a cadeia de preconceitos que fragiliza essa população e pode gerar diversos problemas de saúde mental.
Embora a pesquisa tenha sido realizada no contexto da educação indígena, Gleison Capistrano ressalta que a Abordagem Sistêmica Comunitária (ASC) tem potencial e condições de ser replicada em outras escolas e contribuir para melhoria dos índices educacionais e da saúde mental dos/as estudantes. Isso sem romper com o que define a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), já que ele encontrou dezenas de pontos em comum entre ela e os princípios da Abordagem Sistêmica Comunitária, que enriqueceria os processos e conteúdos escolares.
“Acolher, escutar, cuidar, gerar novos caminhos de solução”, são alguns dos passos apontados pela ASC, com a intenção de contribuir para que pessoas e comunidades assumam a corresponsabilidade pelas mudanças que necessitam, com autonomia. Há princípios que norteiam esses passos – Autopoiese comunitária, Trofolaxe humana, Sintropia – e foi olhando para eles que o pesquisador identificou como é possível enriquecer a experiência escolar. Recheados de vida e sentidos, os conteúdos ganham novos significados e contribuem para o equilíbrio da saúde mental dos/as estudantes.
Se tivesse conhecido uma escola assim, o menino Gleison teria evitado algum sofrimento nos seus primeiros anos escolares, quando disse encontrar dificuldades para “decorar” os conteúdos, como exigiam seus professores/as. Há uma distância gigante entre decorar e apreender. Inteligente e sensível, ele ansiava por compreender e reelaborar o porquê das coisas.
Quer mergulhar mais fundo na tese? Em breve ela estará disponível no nosso banco de Trabalhos Científicos onde você poderá acessá-la por inteiro. Como a defesa aconteceu recentemente (25/06/2025), Gleison Capistrano tem um prazo para incluir observações da banca, mas acredita que até outubro ela já estará disponível aqui e nos canais oficiais do Instituto Federal do Ceará. Realizada no IFCE, pela Rede Nordeste de Ensino (Renoen) e vinculada ao Grupo de Pesquisa em Inovação de Recursos Didáticos, Produtos Educacionais e Tecnológicos (Grepet), a pesquisa foi orientada pelo professor doutor Solonildo Almeida e coorientada pelo professor doutor Sandro Jucá. Fizeram parte da banca os/as professores/as doutores/as Francisco Aquino, Auzuir Ripardo, Ottorino Bonvini, Graciela da Silva Oliveira e Vera Dantas.
Por Milene Madeiro