Quem olha para a casa simples de muro acimentado e portão metálico, na região do Grande Bom Jardim, não imagina que ela abriga dez pessoas com histórias marcadas pela exclusão e desumanização vividas em hospitais psiquiátricos – espaços que por décadas foram lugar de isolamento e segregação para quem fugia do padrão de normalidade ditado pela sociedade. Vítimas de um modelo hospitalocêntrico em saúde mental, grande parte de suas vidas elas passaram longe do convívio social, trancafiadas e sufocadas por tratamentos opressores que, em muitos casos, custou a perda de seus laços familiares.
A luta antimanicomial, aos poucos, vem mudando a forma como os transtornos mentais são encarados no Brasil. O movimento que começou em 1987, caminhou para que houvesse mudanças no sistema psiquiátrico brasileiro, propondo a garantia de tratamentos menos nocivos e em liberdade, reinserindo os indivíduos no convívio social. Desde então, muitas políticas públicas foram criadas para oferecer o melhor cuidado possível para quem tem os mais diversos transtornos mentais. Uma delas instaurou os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), simplesmente conhecidas como Residências Terapêuticas (RTs).
Institucionalizadas em 11 de fevereiro de 2000, pela Portaria n° 106, do Ministério da Saúde, as Residências Terapêuticas são casas dentro dos espaços urbanos voltadas para acolher egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares, mudando a realidade da internação e trazendo-as de volta à sociedade. As residências estão inseridas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) oferecendo atendimento psicológico, juntamente com assistência social e cuidados básicos.
A rotina diária dentro dos antigos hospitais psiquiátricos – com seu isolamento por grades ou paredes frias, as traumáticas formas de tratamentos, o ambiente de tristeza, violência e abandono – se transformou num cotidiano agradável, dentro de um ambiente que estimula o convívio social e assegura cuidados e dignidade. F.T, um dos residentes (não identificado para preservar sua privacidade), conta com carinho sobre seu dia a dia. Morador da Residência Terapêutica da Regional V desde 2013, sua vida é tomada por calmaria, numa rotina que em nada lembra o passado. “Eu acordo, tomo meu café com pão, tomo banho, tenho meu almoço e depois vou me deitar”.
A RT da Regional V foi inaugurada no início dos anos 2010 e é gerida pelo Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) e a Prefeitura de Fortaleza que, em parceria com o Movimento Saúde Mental (MSM), realizam um atendimento especial aos residentes. É uma RT qualificada como Tipo II, que acolhe pessoas com acentuado grau de dependência, que necessitam de cuidados mais intensivos e específicos. Para além dos medicamentos prescritos e acompanhamento da equipe médica do CAPS II, cada morador/a participa de atividades de cuidado e de arteterapia realizados pelos/as terapeutas/as do MSM, que colaboram para seu bem-estar biopsicossocioespiritual, como propõe a socioterapia da Abordagem Sistêmica Comunitária (ASC) desenvolvida pelo psiquiatra e padre Rino Bonvini, fundador do MSM.
Semanalmente, aqueles/as que possuem uma mobilidade melhor se deslocam até a Palhoça Comunitária do MSM para participar das terapias em grupo e dos cuidados oferecidos. Os que não conseguem sair da residência, participam de atividades realizadas pelos/as terapeutas na própria casa uma vez por semana. “Porque estão acamados ou porque têm outras questões que não permitem que eles saiam, aí a equipe vai até eles”, explica Ana Paula Fernandes, coordenadora da Palhoça.
Sobre a participação nas atividades da Palhoça, Ana Paula conta que eles gostam muito do Circuito de Cuidados e do Palco Aberto nas sextas-feiras, mas também participam de alguns grupos de terapia, além da hortaterapia realizada na Horta Comunitária Maria Abreu. Dentro da residência, os/as terapeutas promovem atividades de meditação, aromaterapia, relaxamento e de arteterapia que estimulam a criatividade, como desenhos e pinturas.
“Um dia desses eu desenhei um tambor, um triângulo… desenhei uma casa também. Dou valor a pintar, mas eu gosto mais é do escalda-pés”, conta F.T, animado ao lembrar as atividades que participa na Palhoça. A arteterapeuta do MSM Joyce Monteiro, que acompanha os residentes em casa todas as terças-feiras, explica que as atividades de pintura e desenho são focadas em trabalhar a questão motora e sensorial de cada participante. Paralelamente, também “são feitas práticas de cuidados como aromaterapia, meditação, escalda pés e reflexologia, para estimular autocuidado e alinhar os sentidos”, destaca.
O impacto dessas ações transparece na vida calma que a casinha com quintal de grama verde oferece. A rotina em um ambiente de acolhimento e respeito às particularidades de cada pessoa mostra como o trabalho da RT, junto com as terapias do MSM, têm feito com que o tratamento psiquiátrico seja conduzido de uma forma mais leve e digna. “A gente vê visivelmente a melhora na autoestima, o sorriso, o desejo e a alegria de estar ali participando, nem que seja apenas rabiscando, mas estar em grupo”, comenta Ana Paula.
Mesmo com desafios, a existência das RTs é um trabalho que mostra como é possível desmistificar e mudar a forma como as pessoas com transtornos mentais são vistas e cuidadas, rompendo com os estereótipos de invalidez, garantindo a ressocialização e a cidadania que é direito de todos/as
Texto e fotos: Richardson Lael
Revisão: Milene Madeiro